sexta-feira, agosto 27, 2004

Tu

Começa a música; a clave ecoa dentro do meu corpo e fá-lo vibrar. Percorro a sala com um olhar e lá estás tu, de pé, também a sentir a clave que bate dentro de ti. Antes de dar por isso já atravessei rapidamente a sala e estendi-te delicadamente a mão. Faz-se a ligação. As nossas batidas começam a harmonizar-se. Frente a frente, a clave, tal como uma rajada de vento, desloca-nos num passo base preparatório. Sinto a tua mão, e através dela o teu corpo. A pouco e pouco, o teu corpo abandona-se à condução, os teus gestos parecem fluir não de ti, mas directamente da música. O teu olhar cruza-se com o meu e isola-nos do mundo. Ficam a música, tu e eu.

Quando me apercebo, já não sou eu que conduzo. Leio a tua mão, leio o teu olhar e és tu que pedes o próximo movimento.

Surge um sorriso na tua cara que ilumina o espaço em que dançamos. A música parece estar a sair de dentro de ti. Eu abandono-me também à música, a ti. Quem será que está a conduzir esta dança? Não há pressão entre as nossas mãos, um corpo torna-se a continuidade do outro. Uma música, um par, um corpo.

Tenho de voltar á terra. Tu fazes-me flutuar e esquecer-me de tudo... mas há outros pares na pista a dançar e alguns bem pouco cuidadosos. Mas não consigo voltar á terra; vou entreolhando os outros pares mas sinto que o nosso balão já partiu. Durante grande parte da música, não sinto nada, sinto tudo. Não penso em nada, penso em ti, penso na música, penso em tudo.

Será que estás a sentir o mesmo que eu? Eu já não sinto o meu corpo, já não sinto o teu. É a metamorfose perfeita. E esse teu sorriso que cresce. Ouvem-se risos: foste tu ou fui eu que o soltou? Devo ter sido eu, pois é um prazer dançar contigo, sentir a delicadeza, a força, a fragilidade e a energia das tuas mãos. Rodamos para a um lado, rodamos para o outro, os braços giram e voam, mas sempre se encontram com precisão, firmeza e sensualidade. Como disse uma vez um grande actor num grande filme: “You make me wanna be a better man”...

De repente, termina a música... cada um de nós flui de novo para dentro do seu próprio corpo. Olhando para o teu sorriso, só consigo dizer “obrigado”. Um último olhar de uma cumplicidade que começou e acabou com a música. Foste a minha deusa nesse período.

Começa a próxima música; a clave ecoa...

quarta-feira, agosto 25, 2004

Comunhão com o corpo

Já a propósito de um outro assunto, levantei a questão da comunhão com o nosso corpo. Não deixa de ser incrível a forma como vivemos o nosso dia a dia dissociados dele; o tal exemplo clássico que diz que só pensamos nos pés quando eles doem! Não quero dizer que não cuidemos do nosso aspecto exterior... Vamos ao ginásio porque achamos que ficamos mais bonitos, apanhamos sol para ficarmos mais sexys, pomos piercings no umbigo, fazemos penteados “fashion”, rapamos os pelos, fazemos dietas, enfim, um sem número de operações de “marketing de imagem”. Mas.... e o corpo? Quantos não têm cuidados com o carro que não têm com o corpo? Verificam o óleo, a pressão dos pneus, fazem as revisões certinhas... que inveja o corpo deve ter por vezes... O corpo... quando avariar, nessa altura, lá vai à “oficina”.

Os motivos desta dissociação parecem-me simples e evidentes. Cada vez mais a sociedade nos afasta do nosso corpo. Ainda no outro dia li algures que até as crianças estão afectadas por este síndrome de dissociação corporal: em vez de estarem na rua a jogarem à bola, aos pontapés e abraços uns aos outros, jogam Championship Manager na Playstation... é a este ponto que estamos dissociados do corpo...

Aqui entra a salsa!

Sentir a música. O ritmo que nos entra pelo corpo e o faz vibrar. Dançar. O corpo solto ao som da música com a mente apenas a supervisionar. O par. A comunicação subtil com um simples toque de mãos. A salsa. A harmonia de todos estes elementos. A comunhão com o corpo. A redescoberta do nosso ser. Sentir o prazer de sentir o nosso corpo. Sentir que não há limites para esta comunhão. Poder partilhar esta constante descoberta com o par com que estamos a dançar. Momentos mágicos. Momentos intensos. E para dar continuidade a este banho de sensações: venha a salsa seguinte!

Há outras formas de me reencontrar? Certamente que sim, mas a salsa é uma delas e dá-me “paletes” de prazer!

A salsa, o meu corpo e eu, o triângulo perfeito?

quinta-feira, agosto 19, 2004

Relacionamentos

Muito se houve, muito se vê, muito se sente sobre os relacionamentos na salsa. Mas afinal o que se passa com a salsa? O problema é da salsa? É dos salseiros? Será da água?

Para mim a questão é bastante simples. A salsa é para todos nós um “part-time”, um escape, uma forma de se divertir, da mesma forma que outras pessoas andam de bicicleta, correm, fazem ginástica, jogam tênis ou qualquer outra actividade. É natural nestas situações estarmos mais descontraídos, aproveitarmos para conhecer outras pessoas, esperarmos encontrar gente interessante e também, em alguns casos, aproveitar para tentar “engatar”... Ao deixarmos cair algumas das barreiras que colocamos à nossa frente no dia a dia, ficamos mais expostos mas também mais vulneráveis.

Alguns de nós estamos carentes, outros sentem necessidade de se afirmar, outros estão cheios de carinho que querem partilhar, outros querem apenas um “chuto” de boa disposição, outros aspiram a tornarem bailarinos perfeitos e a lista continua.....

A todos estes motivos junta-se um outro ingrediente: a dança. Dançar é também sensualidade. Encostarmo-nos a alguém não é comum. Qual a percentagem das pessoas que conheço na salsa a quem já me encostei? A quem já “abracei” numa kizomba? Qual a percentagens de colegas de trabalho a quem fiz o mesmo?.... Pois, aqui a dança é inegavelmente diferente.

Por isso, enquanto para muitos de nós dançar, abraçar é sinónimo de diversão e de partilha de bons momentos, para outros pode ser uma forma de aproximação para dar e receber carinho ou algo mais. No entanto, julgo que todos ganham. Se uns se querem divertir e conseguem-no, óptimo. Se outros precisam de carinho e o encontram na salsa, óptimo.

Os relacionamentos entre salseiros por vezes acabam? Por vezes são curtos? Pois é, mas o mesmo acontece com TODOS os relacionamentos... so what? Quem não arrisca, não petisca!

Parece-me por isso que se tenta por vezes deitar a culpa das desventuras dos relacionamentos para cima da salsa... coitada da salsa! “La salsa no puede parar”. Espero que cada um de nós continue a retirar da salsa aquilo que necessita. Não é costume na salsa invadir-se o espaço do parceiro, vulgo “abusar”. Se acontecesse, é apenas a excepção que confirma a regra. Portanto:

vivam a salsa da forma que esta vos fizer mais feliz

é o que eu tento fazer...

sexta-feira, agosto 13, 2004

Dia Não

Hoje não me apetece muito escrever... Estou em dia não.

Adormecer ontem com a sensação de estar a perder algo de precioso deixou-me um amargo na alma... Quando algo é verdadeiramente precioso, não posso fechar a mão para que não fuja, mas sentir que me escorre pelo corpo e me abandona...

A ver se hoje vou dançar salsa para lavar a alma...

quarta-feira, agosto 11, 2004

Sentimentos intensos

Não há dúvida que as letras das salsas transmitem muito daquilo que sinto ao dançar, ao viver... Uma das salsas de que já aqui falei tem um excerto magnífico que traduzo aqui:

Entre esta mulher e eu as palavras sobram
O que tem essa mulher?
Que só de olhar para ela me acaricia a pele
O que tem essa mulher?
Que me estremece a alma e me acaricia a pele
O que tem essa mulher?
Que me rouba a calma e me faz enlouquecer
O que tem essa mulher?
Que me arranca suspiros e me queima a pele
O que tem essa mulher?
Que me sinto perdido e não sei que fazer
O que tem essa mulher?
Que me sinto perdido e me eriça a pele

Ter alguém que nos faça sentir assim é óptimo... mas quero, mais uma vez, extrapolar este sentimento para a salsa, o meu laboratório da vida. É precisamente este sentimento que procuro ter com o par com quem danço. Não será esta uma das maravilhas da salsa? Poder desfrutar destes sentimentos intensos, que têm início no primeiro passo de dança e terminam com o final da música? Na salsa, poder sentir-me nas nuvens enquanto danço... humm... uma sensação maravilhosa, só ultrapassada pelo sentimento verdadeiro, por alguém, todos os momentos do dia.

sexta-feira, agosto 06, 2004

Os olhos são o espelho da alma

Hoje, ao ouvir uma salsa do Oscar D'Leon no meu carro, houve uma frase que não me saíu da cabeça... "Os olhos são o espelho da alma".

Esta frase, que não é propriedade da salsa, mas antes da sabedoria popular, levou-me a pensar de que forma a salsa, como laboratório da vida, nos revela os olhos e a alma dos salseiros(as)...

Decidi dividir os salseiros consoante a forma como olham para o par enquanto dançam e daí extrapolar para o espelho da alma!

O salseiro(a) que não olha para o par enquanto dança.
Por vezes, vêem-se salseiros que enquanto dançam olham para a "plateia" para aferirem a quantidade de espectadores que estão atentos; olham também muito para o seu próprio corpo emquanto dançam e por raras vezes (talvez sem querer) cruzam o olhar com a pessoa que por acaso está ali a dançar com ele. Aqui não há olhar. Para mim, aqui também não há alma. Sugestão: "olha, carregaste no botão errado! Esse diz EGO; era suposto carregares no outro ao lado, que diz ALMA! Corrige lá isso"

O salseiro(a) que não tira os olhos do par.
No lado oposto ao anterior estão aqueles que desde o primeiro ao último compasso olham fixamente para o par, alterando um sorriso com um olhar mais sério. Fico sempre na dúvida se esses querem de facto espelhar totalmente a alma para que o par possa ler a totalidade do seu ser ou se estão a fazer um "jogo de espelhos", isto é, projectar conscientemente uma alma que não é a que têm, mas a que gostariam de ter... "Eu não sou assim como me estou a mostrar, mas gostava..."

O ponto de equilíbrio?!
Algures entre estes dois extremos, temos aqueles salseiros(as) que olham para o par, transmitem aquilo que sentem, mas projectam também o olhar para o espaço, criando um aura onde a alma é de facto projectada plenamente. Sugestão: quando acabar a música, sugerir que se continue a dançar mais uma!

Esta não é uma análise do comportamente do salseiro através do seu olhar, mas apenas uma concretização de "os olhos são o espelho da alma".

E eu... quererei eu espelhar a minha alma nos meus olhos? Ou será que tento projectar aquilo que gostaria de ser? Ou então... será que consigo controlar alguma coisa que os meus olhos espelhem?! Duvido e ainda bem.

terça-feira, agosto 03, 2004

O grande círculo da vida

Imagine-se o Alberto salseiro. Salseiro sempre com um sorriso na cara e com muita alegria a dançar. Mas, como talvez a maioria de nós, o Alberto gostaria de melhorar, evoluir, ser mais popular, dançar melhor, etc...

Um dia o Alberto repara noutro salseiro que faz um grande sucesso; o Bruno salseiro, lindo e com um corpo perfeito. O Alberto implora aos seus deuses que o deixem ser como o Bruno pois seria muito mais feliz. Os deuses acedem e o nosso ex-Alberto salseiro passa a ser o Bruno salseiro.

Embora inicialmente radiante, rapidamente o Bruno salseiro repara noutro salseiro que faz muito sucesso. O Carlos salseiro, que tem uma técnica irrepreensível e conhece provavelmente todos os passos que existem! Mais uma vez o Bruno implora aos deuses que o deixem ser como o Carlos pois seria muito mais feliz. Os deuses acedem e o nosso ex-Alberto salseiro passa a ser o Carlos salseiro.

Embora inicialmente radiante, rapidamente o Carlos repara noutro salseiro que faz muito sucesso. O Diogo salseiro, com uma sensualidade a dançar que ele nunca tinha visto. Mais uma vez o Carlos implora aos deuses que o deixem ser como o Diogo pois seria muito mais feliz. Os deuses acedem e o nosso ex-Alberto salseiro passa a ser o Diogo salseiro.

Embora inicialmente radiante, rapidamente o Diogo repara noutro salseiro que faz muito sucesso. O Eduardo salseiro, um improvisador nato que deixa o par sempre radiante com as suas invenções. Mais uma vez o Diogo implora aos deuses que o deixem ser como o Eduardo pois seria muito mais feliz. Os deuses acedem e o nosso ex-Alberto salseiro passa a ser o Eduardo salseiro.

Embora inicialmente radiante, rapidamente o Eduardo repara noutro salseiro que faz muito sucesso. O Alberto salseiro, que tem um sorriso maravilhoso e uma alegria a dançar contagiante! E pela última vez, o Eduardo dirige-se aos seus deuses dizendo que aprendeu a lição e gostaria de voltar a ser o Alberto. E assim, o nosso ex-Alberto salseiro volta a ser o Alberto salseiro e aprendeu a dar valor as suas qualidades e a ver também os defeitos dos outros.... e foi feliz para sempre...

Nota: qualquer semelhança destes nomes com nomes de salseiros reais é pura coincidência. Qualquer semelhança entre estas situações e situações reais na salsa ou na vida é a pura realidade...